quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Liberdade não está a passar por aqui


A história e a filosofia política ensinam-nos que quando o centro do poder está longe da nossa comunidade, esse poder começa, mais tarde ou mais cedo, a ser visto pelas pessoas como ilegítimo. Foi esse fenómeno que atingiu a União Europeia. E é-me praticamente impossível escrever uma linha que seja sobre a aplicação do vulgarmente conhecido “Memorando da Troika”, decorridos que estão dois anos sobre a sua assinatura, sem que aborde esta temática.

A Europa, tal como foi imaginada e construída na segunda metade do século XX, não é mais que um artifício de intelectuais progressistas que abandonaram a ideia conservadora e realista de que a Europa vive dos seus contrastes, das suas diferenças e dos seus conflitos e não da sua coerência ou da sua fraternidade. Só por este facto, a ideia da Europa una, indivisa e coesa, os Estados Unidos da Europa, enfim, todo o projecto europeu seria um projecto falhado, à partida, em tudo o que extravasasse a união aduaneira e a zona de comércio livre. Mesmo a ideia de que a Europa se tinha tornado num modelo de governação para os povos, sem a interferência directa destes, só nos podia ter conduzido a uma situação como a actual. Construir uma democracia federalista baseada numa união de Estados soberanos e democráticos terminaria, inevitavelmente, em desgraça. Desenhar um Estado democrático sem povo acabou na construção de uma frágil união de Estados sem povo e sem democracia. Com efeito, a menos que se construa uma verdadeira e genuína identidade europeia, não há razões que levem a crer o europeu mais crédulo de que a União Europeia venha a ser um Estado efectivamente democrático. Os burocratas de Bruxelas e os líderes europeus bem o têm forçado, sem qualquer resultado. Basta vermos diariamente as demonstrações de desprezo pelo mais comum dos procedimentos democráticos que os líderes europeus têm adoptado – ao ponto de se julgarem na disponibilidade de nomearem governos ilegítimos ou de tomarem medidas desprovidas de senso, como aconteceu na Itália ou no Chipre. A identidade e o espírito dos povos nascem, crescem e morrem naturalmente. E se a natureza vencerá sempre a guerra, a democracia também tem dado as suas cartas. Se não convence a opinião, fiquemo-nos pelos factos.

Mais do que os sonhos de César, Napoleão ou de Hitler, a União Europeia é o projecto político mais ambicioso de todos os tempos. Tentar unir numa só força um conjunto de Estados independentes e históricos através de meios como a criação de uma força de defesa europeia (que destronasse a NATO), a instituição de um ordenamento jurídico e de uma área judicial comuns (que interferissem e esmagassem as ordens jurídicas soberanas), a criação de uma Constituição europeia (sem que um verdadeiro poder constituinte lhe esteja por base) ou a criação de uma moeda única (que rivalizasse com o dólar) só pode ser, no mínimo, ambicioso. Mas não é natural. Nem democrático.

A eterna comparação com os Estados Unidos da América cairá sempre por terra. E, por isso, caiu também por terra a utopia de criar os Estados Unidos da Europa. A verdade é que onde os EUA nasceram como uma comunidade que partilhava cultura, valores e língua, a Europa é um albergue de países com línguas, culturas e fronteiras centenárias. E se a América se transformou num Estado federal porque uma série de acontecimentos históricos a conduziram a isso, a Europa sonha tornar-se num Estado federal porque se construiu um projecto para isso. Onde a história e a natureza dos homens fizeram um Estado, a utopia criou um fracasso: a União Europeia. E a Europa falhará – e já está a falhar – pelo optimismo desmedido dos seus líderes que redundou na “falácia da melhor das hipóteses”. Como Roger Scruton explicou, a falácia da melhor das hipóteses “é a mentalidade do jogador. Diz-se por vezes que os jogadores são pessoas que arriscam e isso, pelo menos, pode-se admirar neles: terem a coragem de arriscar o que têm no jogo que os atrai. Isto é, de facto, o oposto da verdade. Os jogadores não são de todo pessoas que arriscam; entram no jogo com a plena expectativa de ganhar, levados pelas suas ilusões a expor-se numa situação irreal de segurança1. A prova maior da mentalidade do jogador na construção europeia foi a criação da moeda única. E Portugal, em concreto, sofre hoje, duramente, as consequências da falta de algum pessimismo na sua integração europeia.

Quando Portugal conseguiu a sua adesão ao Euro, todos pareciam longe de imaginar que a moeda única pudesse ter um desfecho tão trágico. Obviamente, muitos dos problemas que Portugal apresenta actualmente são estruturais e carecem de resolução interna e de reformas profundas no nosso sistema político, económico e social – da Constituição ao modelo de Segurança Social –, mas é inegável que a dependência da moeda única e das suas crises nos deixam praticamente de pés e mãos atados.

Apesar da excitação global com a crescente integração europeia, algumas vozes souberam levantar-se a tempo de alertar para os perigos a que estávamos sujeitos. Mais uma vez, a falácia da melhor das hipóteses e o optimismo utópico levaram a melhor sobre prudentes como Margaret Thatcher, por exemplo, que, em 2002, dizia estas quatro coisas tão simples2:

1.      “A moeda única europeia está condenada ao fracasso, tanto económico como político e social, embora o momento e as consequências disso ainda não se possam ver com clareza.

2.      Consequentemente, os países que não aderiram devem manter-se à distância.

3.      Este fracasso não pode ser corrigido pelos americanos nem por quaisquer medidas internacionais destinadas a salvar o euro, na medida em que os fundamentos da zona euro carecem de solidez.

4.      A grande prioridade dos não europeus é de tentar limitar os danos que as políticas europeias mais tarde ou mais cedo provocarão na economia mundial.”

Mas, com efeito, ainda o escudo era uma realidade e já Portugal apresentava problemas de fundo demasiado graves para que uma intervenção das entidades internacionais pudesse ser posta de lado. Não precisámos de ser um Estado-membro para sermos alvo de intervenções do FMI, como não precisávamos de ter aderido à moeda única para cairmos nesta crise económica e financeira. Precisávamos, porém, de alguém que nos obrigasse a ajustar a nossa economia, a equilibrar as nossas contas e a reformar o Estado. Mas se o Memorando de Entendimento parecia sugerir uma série de alterações e de medidas necessárias – ainda que duríssimas –, a verdade é que a sua aplicação tem falhado redondamente.

A troika leva já sete avaliações ao memorando e só agora o Governo começa a mostrar reservas quanto ao seu desenho. E se o Governo tem andado, em termos gerais, de forma bastante débil em todo este processo, o que dizer das entidades internacionais? Sobre as entidades europeias creio não ser preciso alongar-me muito mais. Quando os próprios princípios em que elas assentam estão errados, não se podem esperar grandes milagres. Banco Central Europeu e Comissão Europeia tentam a todo o custo e sem resultados tirar Portugal da crise, de forma a salvar o Euro. O Fundo Monetário Internacional, ao contrário, por exemplo, da Organização Mundial do Comércio, está bastante longe de ser um organismo internacional indispensável à economia mundial, mas reveste hoje esse papel, uma vez que os sonhos com as ‘novas ordens’ fizeram com que o papel do FMI não fosse restringido, e não pode ficar isento de responsabilidades pelas falhas do ajustamento português. Se estávamos à espera das instituições internacionais para que Portugal entrasse numa rota de crescimento económico, podemos esquecer essa ilusão. A troika garantiu-nos o financiamento e teve um papel relevante no bacoco ‘regresso aos mercados’ de há uns meses. Mas se queremos que Portugal se torne competitivo e volte a crescer, então é nos portugueses e no Governo (por esta ordem) que temos de depositar as nossas esperanças. As poucas que restam, pelo menos.

O memorando de entendimento, como qualquer plano, apresenta falhas decorrentes da sua própria natureza, mais do que da sua conceptualização ou da sua aplicação. Sendo certo que um memorando desta índole teria de se debruçar sobre um largo leque de matérias, seria de esperar que o mesmo soubesse proporcionar a Portugal uma série de medidas que nos permitissem entrar no caminho do crescimento económico, com base numa austeridade que privilegiasse a redução da despesa pública e a liberdade a vários níveis.

O memorando e a sua aplicação têm falhado – ainda que alguns elogios lhe possam ser endereçados – não só pela sua própria natureza planeadora e rígida, mas sobretudo porque o próprio Governo se tem esquecido de que as pessoas são racionais e de que existem princípios económicos que são básicos. Sendo certo que um Governo deve agir de forma a garantir que o mercado e as pessoas são efectivamente livres, mais certo é que, como diz Andrew Sullivan3, numa figura de estilo feliz, todas as acções de um Governo a este respeito são as de um árbitro de um jogo e não as de um realizador de cinema. O Governo, em várias matérias, não tem sabido resistir aos impulsos controladores que têm norteado a grande maioria dos governos europeus dos últimos cinquenta anos – não meteu o socialismo ‘na gaveta’.

Com efeito, o memorando e a própria conduta do Governo que o tem aplicado têm incorrido naquilo a que Roger Scruton designou como ‘a falácia do planeamento’ – e que Friedrich Hayek tão bem desenvolveu no seu ‘O Caminho para a Servidão’ – que consiste na “crença de que podemos progredir colectivamente em direcção aos nossos objectivos adoptando um plano comum e trabalhando para ele sob a liderança de uma qualquer autoridade central como o Estado. É a falácia de acreditar que as sociedades podem ser organizadas como os exércitos, com um sistema de comando de cima para baixo e um sistema de responsabilização de baixo para cima, garantindo a coordenação bem-sucedida dos muitos em torno de um plano elaborado pelos poucos”. Além de que, acrescentaria, o falhanço, quer do memorando, quer do Governo, quer do próprio sistema ‘entre o socialismo e o capitalismo’4 que tem marcado a política europeia, decorre da crença que tem sido imposta às pessoas por burocratas e políticos de que eles próprios agem sempre de acordo com o interesse público e, naturalmente, preocupados com o bem-estar e a satisfação do próprio povo. Como os factos o têm demonstrado, tal não corresponde de todo à verdade. Mas, apesar disso, foi essa a expectativa que as pessoas alimentaram. E, nesta altura, em que a desilusão só pode ser enorme porque as expectativas também o foram, é compreensível que se assista à revolta e à demonstração física dessa revolta pelas pessoas. Semearam ventos, a tempestade aí está.

Além de tudo o já aqui abordado, porém, a falha maior do memorando (e do Governo na sua aplicação) foi, desde o início, a falta de política fiscal. Ainda que se compreenda que o Governo pudesse ter ficado com maior liberdade nesse campo, pelo próprio silêncio do memorando, a verdade é que desde o início que se percebeu que a política fiscal só podia ficar esquecida ou ser brutalmente maltratada pelo Governo – uma vez que, desde logo ficou claro que o Governo se dedicaria exclusivamente a cumprir o memorando e não a agir pelo seu próprio pé.

É um facto inegável que, em determinados casos, os impostos são indispensáveis. Não oferecem discussão as questões da ordem, da segurança, da lei e da defesa. Não serão discutíveis, também, os cuidados básicos de saúde e ensino gratuitos para quem não tem possibilidade de os pagar e um sistema de segurança social que proteja aqueles que não podem competir no mercado. Como também parece evidente que só porque determinado serviço público é por todos considerado indispensável, isso não significa que é o Estado o seu melhor prestador ou que o mesmo tenha de ser gratuito – ou mesmo, falaciosamente, ‘tendencialmente gratuito’.

Não tem sido esse o entendimento do Governo – e a troika parece não viver especialmente amuada com isso. Se é verdade que, com a aplicação do memorando, a despesa pública tem decrescido, também é verdade que já antes do memorando a despesa vinha decrescendo. O problema está, e sempre tem estado, na base.

Num país onde o Estado assegura tudo, não há lugar à liberdade. Porque um Estado que tudo assegure, é um Estado com uma despesa elevada e, consequentemente, com uma carga fiscal brutal. Ora, tanto a despesa pública como os impostos são claras limitações à liberdade dos cidadãos e quando admitimos excesso de despesa pública (seja num serviço nacional de saúde universal e gratuito, seja num subsistema único para funcionários públicos, seja no próprio excesso de funcionários públicos, seja num sistema de educação universal e gratuito, seja num sistema de segurança social estatizado e mal organizado, etc.), também temos de admitir impostos elevados. E, admitindo os dois, reconhecemos de imediato que perdemos a própria liberdade. Este Governo, esta troika e este memorando a isso nos têm conduzido em grande medida.

A verdade é que, como ficou para a eternidade demonstrado pela curva de Laffer, o aumento de impostos acaba sempre por significar uma diminuição das receitas fiscais. Aliado a um excesso de regulamentação (apesar de aqui, tanto Governo como troika terem encetado alguns esforços), o excesso de impostos sufoca a criação de riqueza e conduzem à fuga de capitais e jovens talentos para outros mercados mais favoráveis. E contra isto, Governo e troika têm feito muito, muito pouco. Com consequências que já se fazem sentir hoje, mas que nos deixarão marcas para várias décadas (ainda que menos do que aquelas em que estaremos a pagar juros e mais juros, que um tardio pedido de resgate só veio agravar…).

Todos os princípios-base têm sido enunciados ao longo dos anos por várias vozes. A construção europeia e a construção da frágil democracia portuguesa nunca adivinharam um final feliz. E torna-se difícil hoje pensar em alternativas e em cenários futuristas.

Portugal esperará, como todos os outros, pelo colapso da moeda única – já que nenhum Estado terá, em princípio, a coragem de o abandonar por livre iniciativa. Talvez esse cenário, que não é risonho, pudesse ser antecipado com a livre saída do euro. Parece-me, contudo, que tal não irá acontecer. Somos, e continuaremos a ser, vítimas e cúmplices das políticas anti-democráticas e planificadoras da União Europeia e do nosso próprio sistema interno. E, como o resto da Europa, cairemos graças à aplicação, durante mais de quarenta anos, de um sistema que subverteu todas as virtudes do capitalismo, adulterando-o com as mais vis opções do socialismo (democrático ou não). O caminho seria, então, o oposto a este. Mais liberdade e menos imposição, mais mercado e menos interferência do Estado no seu normal funcionamento (de que as estapafúrdias nacionalizações da banca são um péssimo exemplo), mais individualismo e menos colectivismo, mais caridade individual e menos solidariedade estatal, mais escolha e menos uniformização, mais oportunidades e menos igualdade de resultados. Não há milagres económicos sem rupturas definitivas. Não há crescimento, nesta fase, sem passarmos por dias negros. Não há salvação possível sem que se destrua, por fim, um sistema que faliu, mas que todos tentam, diariamente e sem resultados, salvar.

Nuno Gonçalo Poças
Advogado
in “Troika ano II- Uma Avaliação de 66 Cidadãos”, coordenação do Prof. Doutor Eduardo Paz Ferreira, edições 70, 2013

 
1 Scruton, Roger, As Vantagens do Pessimismo, Quetzal Editores, 2011, pp. 29-30

2 Thatcher, Margaret, A Arte de Bem Governar – Estratégias para um mundo em mudança, Quetzal Editores, 2002, pp. 396

3 Sullivan, Andrew, A Alma Conservadora, Quetzal Editores, 2010, pp. 305

4 Mesmo em partidos do chamado ‘centro direita’. Hayek reconheceu-o, anos antes, quando dedicou ‘O Caminho para a Servidão’ aos “socialistas de todos os partidos”

 

Sem comentários:

Enviar um comentário