A história e a filosofia política ensinam-nos que quando o centro do poder está longe da nossa comunidade, esse poder começa, mais tarde ou mais cedo, a ser visto pelas pessoas como ilegítimo. Foi esse fenómeno que atingiu a União Europeia. E é-me praticamente impossível escrever uma linha que seja sobre a aplicação do vulgarmente conhecido “Memorando da Troika”, decorridos que estão dois anos sobre a sua assinatura, sem que aborde esta temática.
A Europa, tal como foi imaginada e construída na segunda
metade do século XX, não é mais que um artifício de intelectuais progressistas
que abandonaram a ideia conservadora e realista de que a Europa vive dos seus
contrastes, das suas diferenças e dos seus conflitos e não da sua coerência ou
da sua fraternidade. Só por este facto, a ideia da Europa una, indivisa e
coesa, os Estados Unidos da Europa, enfim, todo o projecto europeu seria um
projecto falhado, à partida, em tudo o que extravasasse a união aduaneira e a
zona de comércio livre. Mesmo a ideia de que a Europa se tinha tornado num
modelo de governação para os povos, sem a interferência directa destes, só nos
podia ter conduzido a uma situação como a actual. Construir uma democracia
federalista baseada numa união de Estados soberanos e democráticos terminaria,
inevitavelmente, em desgraça. Desenhar um Estado democrático sem povo acabou na
construção de uma frágil união de Estados sem povo e sem democracia. Com
efeito, a menos que se construa uma verdadeira e genuína identidade europeia,
não há razões que levem a crer o europeu mais crédulo de que a União Europeia
venha a ser um Estado efectivamente democrático. Os burocratas de Bruxelas e os
líderes europeus bem o têm forçado, sem qualquer resultado. Basta vermos
diariamente as demonstrações de desprezo pelo mais comum dos procedimentos
democráticos que os líderes europeus têm adoptado – ao ponto de se julgarem na
disponibilidade de nomearem governos ilegítimos ou de tomarem medidas
desprovidas de senso, como aconteceu na Itália ou no Chipre. A identidade e o
espírito dos povos nascem, crescem e morrem naturalmente. E se a natureza
vencerá sempre a guerra, a democracia também tem dado as suas cartas. Se não
convence a opinião, fiquemo-nos pelos factos.
Mais do que os sonhos de César, Napoleão ou de Hitler, a
União Europeia é o projecto político mais ambicioso de todos os tempos. Tentar
unir numa só força um conjunto de Estados independentes e históricos através de
meios como a criação de uma força de defesa europeia (que destronasse a NATO),
a instituição de um ordenamento jurídico e de uma área judicial comuns (que
interferissem e esmagassem as ordens jurídicas soberanas), a criação de uma
Constituição europeia (sem que um verdadeiro poder constituinte lhe esteja por
base) ou a criação de uma moeda única (que rivalizasse com o dólar) só pode
ser, no mínimo, ambicioso. Mas não é natural. Nem democrático.
A eterna comparação com os Estados Unidos da América cairá
sempre por terra. E, por isso, caiu também por terra a utopia de criar os
Estados Unidos da Europa. A verdade é que onde os EUA nasceram como uma
comunidade que partilhava cultura, valores e língua, a Europa é um albergue de
países com línguas, culturas e fronteiras centenárias. E se a América se
transformou num Estado federal porque uma série de acontecimentos históricos a conduziram
a isso, a Europa sonha tornar-se num Estado federal porque se construiu um
projecto para isso. Onde a história e a natureza dos homens fizeram um Estado,
a utopia criou um fracasso: a União Europeia. E a Europa falhará – e já está a
falhar – pelo optimismo desmedido dos seus líderes que redundou na “falácia da
melhor das hipóteses”. Como Roger Scruton
explicou, a falácia da melhor das hipóteses “é
a mentalidade do jogador. Diz-se por vezes que os jogadores são pessoas que
arriscam e isso, pelo menos, pode-se admirar neles: terem a coragem de arriscar
o que têm no jogo que os atrai. Isto é, de facto, o oposto da verdade. Os
jogadores não são de todo pessoas que arriscam; entram no jogo com a plena
expectativa de ganhar, levados pelas suas ilusões a expor-se numa situação irreal
de segurança1”. A prova maior da mentalidade do jogador na
construção europeia foi a criação da moeda única. E Portugal, em concreto,
sofre hoje, duramente, as consequências da falta de algum pessimismo na sua
integração europeia.
Quando Portugal conseguiu a sua adesão ao Euro, todos
pareciam longe de imaginar que a moeda única pudesse ter um desfecho tão
trágico. Obviamente, muitos dos problemas que Portugal apresenta actualmente são
estruturais e carecem de resolução interna e de reformas profundas no nosso
sistema político, económico e social – da Constituição ao modelo de Segurança
Social –, mas é inegável que a dependência da moeda única e das suas crises nos
deixam praticamente de pés e mãos atados.
Apesar da excitação global com a crescente integração
europeia, algumas vozes souberam levantar-se a tempo de alertar para os perigos
a que estávamos sujeitos. Mais uma vez, a falácia da melhor das hipóteses e o
optimismo utópico levaram a melhor sobre prudentes como Margaret Thatcher, por exemplo, que, em 2002, dizia estas
quatro coisas tão simples2:
1.
“A
moeda única europeia está condenada ao fracasso, tanto económico como político
e social, embora o momento e as consequências disso ainda não se possam ver com
clareza.
2.
Consequentemente,
os países que não aderiram devem manter-se à distância.
3.
Este
fracasso não pode ser corrigido pelos americanos nem por quaisquer medidas
internacionais destinadas a salvar o euro, na medida em que os fundamentos da
zona euro carecem de solidez.
4.
A
grande prioridade dos não europeus é de tentar limitar os danos que as
políticas europeias mais tarde ou mais cedo provocarão na economia mundial.”
Mas, com efeito, ainda o escudo era uma realidade e já
Portugal apresentava problemas de fundo demasiado graves para que uma
intervenção das entidades internacionais pudesse ser posta de lado. Não
precisámos de ser um Estado-membro para sermos alvo de intervenções do FMI,
como não precisávamos de ter aderido à moeda única para cairmos nesta crise
económica e financeira. Precisávamos, porém, de alguém que nos obrigasse a
ajustar a nossa economia, a equilibrar as nossas contas e a reformar o Estado.
Mas se o Memorando de Entendimento parecia sugerir uma série de alterações e de
medidas necessárias – ainda que duríssimas –, a verdade é que a sua aplicação
tem falhado redondamente.
A troika leva já
sete avaliações ao memorando e só agora o Governo começa a mostrar reservas
quanto ao seu desenho. E se o Governo tem andado, em termos gerais, de forma
bastante débil em todo este processo, o que dizer das entidades internacionais?
Sobre as entidades europeias creio não ser preciso alongar-me muito mais. Quando
os próprios princípios em que elas assentam estão errados, não se podem esperar
grandes milagres. Banco Central Europeu e Comissão Europeia tentam a todo o
custo e sem resultados tirar Portugal da crise, de forma a salvar o Euro. O
Fundo Monetário Internacional, ao contrário, por exemplo, da Organização
Mundial do Comércio, está bastante longe de ser um organismo internacional
indispensável à economia mundial, mas reveste hoje esse papel, uma vez que os
sonhos com as ‘novas ordens’ fizeram com que o papel do FMI não fosse
restringido, e não pode ficar isento de responsabilidades pelas falhas do
ajustamento português. Se estávamos à espera das instituições internacionais
para que Portugal entrasse numa rota de crescimento económico, podemos esquecer
essa ilusão. A troika garantiu-nos o
financiamento e teve um papel relevante no bacoco ‘regresso aos mercados’ de há
uns meses. Mas se queremos que Portugal se torne competitivo e volte a crescer,
então é nos portugueses e no Governo (por esta ordem) que temos de depositar as
nossas esperanças. As poucas que restam, pelo menos.
O memorando de entendimento, como qualquer plano, apresenta
falhas decorrentes da sua própria natureza, mais do que da sua conceptualização
ou da sua aplicação. Sendo certo que um memorando desta índole teria de se
debruçar sobre um largo leque de matérias, seria de esperar que o mesmo
soubesse proporcionar a Portugal uma série de medidas que nos permitissem
entrar no caminho do crescimento económico, com base numa austeridade que
privilegiasse a redução da despesa pública e a liberdade a vários níveis.
O memorando e a sua aplicação têm falhado – ainda que alguns
elogios lhe possam ser endereçados – não só pela sua própria natureza
planeadora e rígida, mas sobretudo porque o próprio Governo se tem esquecido de
que as pessoas são racionais e de que existem princípios económicos que são
básicos. Sendo certo que um Governo deve agir de forma a garantir que o mercado
e as pessoas são efectivamente livres, mais certo é que, como diz Andrew Sullivan3, numa figura
de estilo feliz, todas as acções de um Governo a este respeito são as de um
árbitro de um jogo e não as de um realizador de cinema. O Governo, em várias
matérias, não tem sabido resistir aos impulsos controladores que têm norteado a
grande maioria dos governos europeus dos últimos cinquenta anos – não meteu o
socialismo ‘na gaveta’.
Com efeito, o memorando e a própria conduta do Governo que o
tem aplicado têm incorrido naquilo a que Roger
Scruton designou como ‘a falácia do planeamento’ – e que Friedrich Hayek tão bem desenvolveu no
seu ‘O Caminho para a Servidão’ – que consiste na “crença de que podemos progredir colectivamente em direcção aos nossos
objectivos adoptando um plano comum e trabalhando para ele sob a liderança de
uma qualquer autoridade central como o Estado. É a falácia de acreditar que as
sociedades podem ser organizadas como os exércitos, com um sistema de comando
de cima para baixo e um sistema de responsabilização de baixo para cima, garantindo
a coordenação bem-sucedida dos muitos em torno de um plano elaborado pelos
poucos”. Além de que, acrescentaria, o falhanço, quer do memorando, quer do
Governo, quer do próprio sistema ‘entre o socialismo e o capitalismo’4
que tem marcado a política europeia, decorre da crença que tem sido imposta às
pessoas por burocratas e políticos de que eles próprios agem sempre de acordo
com o interesse público e, naturalmente, preocupados com o bem-estar e a
satisfação do próprio povo. Como os factos o têm demonstrado, tal não
corresponde de todo à verdade. Mas, apesar disso, foi essa a expectativa que as
pessoas alimentaram. E, nesta altura, em que a desilusão só pode ser enorme
porque as expectativas também o foram, é compreensível que se assista à revolta
e à demonstração física dessa revolta pelas pessoas. Semearam ventos, a
tempestade aí está.
Além de tudo o já aqui abordado, porém, a falha maior do
memorando (e do Governo na sua aplicação) foi, desde o início, a falta de
política fiscal. Ainda que se compreenda que o Governo pudesse ter ficado com
maior liberdade nesse campo, pelo próprio silêncio do memorando, a verdade é
que desde o início que se percebeu que a política fiscal só podia ficar
esquecida ou ser brutalmente maltratada pelo Governo – uma vez que, desde logo
ficou claro que o Governo se dedicaria exclusivamente a cumprir o memorando e
não a agir pelo seu próprio pé.
É um facto inegável que, em determinados casos, os impostos
são indispensáveis. Não oferecem discussão as questões da ordem, da segurança,
da lei e da defesa. Não serão discutíveis, também, os cuidados básicos de saúde
e ensino gratuitos para quem não tem possibilidade de os pagar e um sistema de
segurança social que proteja aqueles que não podem competir no mercado. Como
também parece evidente que só porque determinado serviço público é por todos
considerado indispensável, isso não significa que é o Estado o seu melhor
prestador ou que o mesmo tenha de ser gratuito – ou mesmo, falaciosamente,
‘tendencialmente gratuito’.
Não tem sido esse o entendimento do Governo – e a troika parece não viver especialmente
amuada com isso. Se é verdade que, com a aplicação do memorando, a despesa
pública tem decrescido, também é verdade que já antes do memorando a despesa
vinha decrescendo. O problema está, e sempre tem estado, na base.
Num país onde o Estado assegura tudo, não há lugar à
liberdade. Porque um Estado que tudo assegure, é um Estado com uma despesa
elevada e, consequentemente, com uma carga fiscal brutal. Ora, tanto a despesa
pública como os impostos são claras limitações à liberdade dos cidadãos e
quando admitimos excesso de despesa pública (seja num serviço nacional de saúde
universal e gratuito, seja num subsistema único para funcionários públicos,
seja no próprio excesso de funcionários públicos, seja num sistema de educação
universal e gratuito, seja num sistema de segurança social estatizado e mal
organizado, etc.), também temos de admitir impostos elevados. E, admitindo os
dois, reconhecemos de imediato que perdemos a própria liberdade. Este Governo,
esta troika e este memorando a isso
nos têm conduzido em grande medida.
A verdade é que, como ficou para a eternidade demonstrado
pela curva de Laffer, o aumento de impostos acaba sempre por significar uma
diminuição das receitas fiscais. Aliado a um excesso de regulamentação (apesar
de aqui, tanto Governo como troika
terem encetado alguns esforços), o excesso de impostos sufoca a criação de
riqueza e conduzem à fuga de capitais e jovens talentos para outros mercados
mais favoráveis. E contra isto, Governo e troika
têm feito muito, muito pouco. Com consequências que já se fazem sentir hoje,
mas que nos deixarão marcas para várias décadas (ainda que menos do que aquelas
em que estaremos a pagar juros e mais juros, que um tardio pedido de resgate só
veio agravar…).
Todos os princípios-base têm sido enunciados ao longo dos
anos por várias vozes. A construção europeia e a construção da frágil
democracia portuguesa nunca adivinharam um final feliz. E torna-se difícil hoje
pensar em alternativas e em cenários futuristas.
Portugal esperará, como todos os outros, pelo colapso da
moeda única – já que nenhum Estado terá, em princípio, a coragem de o abandonar
por livre iniciativa. Talvez esse cenário, que não é risonho, pudesse ser
antecipado com a livre saída do euro. Parece-me, contudo, que tal não irá
acontecer. Somos, e continuaremos a ser, vítimas e cúmplices das políticas
anti-democráticas e planificadoras da União Europeia e do nosso próprio sistema
interno. E, como o resto da Europa, cairemos graças à aplicação, durante mais
de quarenta anos, de um sistema que subverteu todas as virtudes do capitalismo,
adulterando-o com as mais vis opções do socialismo (democrático ou não). O
caminho seria, então, o oposto a este. Mais liberdade e menos imposição, mais
mercado e menos interferência do Estado no seu normal funcionamento (de que as
estapafúrdias nacionalizações da banca são um péssimo exemplo), mais
individualismo e menos colectivismo, mais caridade individual e menos solidariedade
estatal, mais escolha e menos uniformização, mais oportunidades e menos
igualdade de resultados. Não há milagres económicos sem rupturas definitivas.
Não há crescimento, nesta fase, sem passarmos por dias negros. Não há salvação
possível sem que se destrua, por fim, um sistema que faliu, mas que todos
tentam, diariamente e sem resultados, salvar.
Nuno Gonçalo Poças
Advogado
in “Troika ano II- Uma Avaliação de 66 Cidadãos”, coordenação do Prof. Doutor Eduardo Paz Ferreira, edições 70, 2013